PAGAMENTO EM CONSIGNAÇÃO PELA VIA JUDICIAL EM MATÉRIA DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA - LEI 13.465/17
- Carlos Honório
- 28 de mai. de 2023
- 7 min de leitura
Atualizado: 20 de jun. de 2023

Segundo reportagem do Portal R7: “Um levantamento feito pelo IBGE, em 2019, apontou que no Brasil existem mais de 5 milhões de domicílios em condições precárias. Essas residências fazem parte de 13.151 aglomerados subnormais no país, que são caracterizados por ocupações irregulares de terrenos públicos ou privados”. (disponível em https://noticias.r7.com/brasilia/em-4-anos-mais-de-9-milhoes-de-m-de-areas-publicas-foram-ocupadas-ilegalmente-no-df-19062023. Acesso em 19.06.2023).
É consenso doutrinário e jurisprudencial de que o Município (e também o Distrito Federal) é o ente federativo competente para realizar a regularização das ocupações irregulares e clandestinas. É o chamado “poder-dever” de regularizar, resultante da competência constitucional atribuída aos Municípios e ao Distrito Federal (art. 30, VIII c/c art. art. 32, §1º, da CRFB/88).
Como bem esclarece Jamilson Lisboa Sabino (in. Tratado de Regularização Fundiária Urbana. Belo Horizonte, Fórum, 2022, pág. 51): “... O Direito à moradia, a função social da propriedade, a dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais são fundamentos constitucionais suficientes para revelar a grandeza e a importância que se devem atribuir à moradia e às condições de habitabilidade de suas ocupações. Inclua-se nisso o poder-dever da Administração Pública na regularização de assentamentos consolidados”.
A lei federal que trata da regularização fundiária urbana (13.465/17) em seu art. 36, §2º, dispõe: “A Reurb pode ser implementada por etapas, abrangendo o núcleo urbano informal de forma total ou parcial”.
No caso de um núcleo urbano informal consolidado antes de 22 de dezembro de 2016, que seja composto, por exemplo, por cinquenta e nove lotes, havendo a regularização de somente dez destes, fica a questão: restará aos outros quarenta e nove aguardar futuro e indefinido prazo de início de processo de regularização fundiária?
A Lei federal 13.465/17 em seu art. 9º estabelece que a Regularização Fundiária Urbana (Reurb) “...abrange medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes”. Contudo, não trouxe a norma legal prazo para que tais medidas fossem cumpridas na parte não regularizada de um mesmo núcleo urbano informal consolidado.
Resta então indagar: poderá o Município ou o Distrito Federal, através de seus órgãos competentes, especular uma valorização imobiliária com a implementação de futuras obras públicas a fim de que possa comercializar posteriormente os imóveis ainda não regularizados, com preços bem acima dos praticados aos imóveis primeiramente regularizados?
Outra questão que se levanta é: poderá o morador em imóvel ainda não regularizado mas que já possua os equipamentos públicos previstos no art. 36, §1º, da Lei 13.465/17 (sistema de abastecimento de água potável; sistema de coleta e tratamento do esgoto sanitário; rede de energia elétrica domiciliar; soluções de drenagem; dentre outros), sabendo do valor que foi pago pelos ocupantes dos imóveis já regularizados, se antecipar a possível especulação imobiliária estatal e consignar em pagamento pela via judicial, o mesmo valor dos imóveis já adquiridos que tenham metragem igual ou próxima do que ocupa?
A solução de direito material possível é o pagamento em consignação, o qual tem previsão nos arts. 334 a 345 do Código Civil, podendo ser conceituado como: “Aquele que é realizado mediante depósito judicial do montante do débito, para que o devedor fique desobrigado da dívida”. (in. Washington dos Santos. Dicionário jurídico brasileiro. - Belo Horizonte: Del Rey, 2001, pg.179).
No que concerne aplicação da consignação em pagamento em relação à regularização fundiária prevista na Lei 13.465/17, esclarece Carlos Roberto Gonçalves (in. Direito civil, 1: esquematizado®: parte geral: obrigações e contratos; coordenador Pedro Lenza. – 6. ed. – São Paulo: Saraiva, 2016, pág. 676): “O art. 335 do Código Civil apresenta um rol, não taxativo, dos casos que autorizam a consignação”.
No mesmo sentido Flávio Tartuce (in. Manual de direito civil: volume único. 6. ed. rev., atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2016, pág. 445): “Na opinião deste autor, como o Código Civil de 2002 adotou um sistema aberto, o rol descrito é exemplificativo (numerus apertus), sendo admitidas outras situações de pagamento em consignação...”.
Ademais, a ação de consignação em pagamento está prevista nos arts. 539 a 549 do Código de Processo Civil. Segundo Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero (in. Código de Processo Civil comentado. 9. ed., rev., atual. e ampl. --São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, pg. 734): “É a ação que visa a liberação do devedor de determinada obrigação. O objetivo do demandante é a obtenção de declaração judicial no sentido de que não se encontra mais obrigado – de que o depósito realizado satisfaz os requisitos legais do pagamento devido...”.
Na importante lição de Humberto Theodoro Júnior (in. Curso de Direito Processual Civil – Procedimentos Especiais – vol. II – 50ª ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2016, pág. 57-58): “Na ação de consignação em pagamento vamos encontrar, segundo a estruturação que lhe dá o direito brasileiro, uma predominância de atividade de conhecimento, de conteúdo declaratório. Mas a executividade se mostra também presente em dosagem bastante significativa, pois o processo permite que atos materiais sejam praticados dentro da relação processual, com afetação de bens que migram de um patrimônio a outro, provocando a extinção, desde logo, da relação jurídica obrigacional deduzida em juízo. Não há condenação, mas permissão a que o devedor, numa execução às avessas, provoque o credor a vir receber o que lhe é devido, sob pena de extinguir-se a dívida mediante o depósito judicial da res debita. Não se dá uma execução em processo apartado, pois tudo ocorre dentro de uma só relação processual, cuja sentença final tem, no caso de procedência do pedido, a força de declarar a eficácia extintiva do depósito feito pelo devedor, após a citação do credor in limine litis”.
No caso da regularização fundiária parcial (imóveis a serem regularizados em momento futuro e incerto), o único pagamento em consignação cabível é pela via judicial (e não extrajudicial), pois ocorrendo especulação imobiliária estatal objetivando a venda direta a preços exorbitantes aos moradores dos imóveis ainda não regularizados, haverá violação ao direito fundamental à propriedade e ao direito social à moradia (art. 5º, XXII e art. 6º, caput, ambos da CRFB/88).
Nas palavras de Paola de Castro Ribeiro Macedo (in. Regularização Fundiária Urbana e seus Mecanismos de Titulação dos Ocupantes: Lei nº 13.465/17 e Decreto nº 9.310/98. – 2. ed. rev., atual. e ampl. -- São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, pág. 60): “... Assim, o direito humano à moradia é indivisível e intimamente ligado ao conjunto de outros direitos da personalidade, como direito à vida, à saúde, à intimidade, à propriedade, ao sossego e à liberdade abarcando também o direito ao lazer e aos serviços públicos, como transporte e proteção contra ameaças externas. Mas não basta apenas um local em que se possa viver em paz, é necessário que haja segurança legal da ocupação, para evitar que o indivíduo viva com medo de ser desapossado a qualquer momento. É necessário que a moradia seja regularizada, dotada de toda a segurança e aparato público capazes de trazer tranquilidade a seus proprietários”.
Assim sendo, cabe aos ocupantes dos imóveis não regularizados que se sentirem ameaçados por eventual especulação imobiliária por parte da entidade estatal (municipal ou distrital), recorrer ao Poder Judiciário, depositando em Juízo a quantia que os ocupantes do imóveis já regularizados, pagaram ao Poder Público.
De outra feita, não há como o Município e o Distrito Federal alegar justa causa para recusa do pagamento em consignação com base no art. 335, I do CC, c/c o art. 544, II, do CPC, pois poderá o morador da área que já conta com os equipamentos públicos, conforme dito anteriormente, pagar pelo tamanho da área que ocupa, os mesmos valores dos lotes já regularizados com tamanho menor, igual ou maior do que o seu, utilizando de simples regra de três matemática para saber o valor.
Conforme José Fernando Simão e outros (in. Código civil comentado: doutrina e jurisprudência. - 5 ed., rev., atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense, 2023, pg. 238): “... justa causa é um motivo justo para o credor se recusar a receber o pagamento: o devedor quer pagar menos do que deve, o devedor quer pagar com prestação diversa da devida, o devedor quer pagar o capital sem ter pago sem ter pago os juros...”.
Também observa Luiz Guilherme Marinoni e outros (in. Código de Processo Civil comentado. -- 9 ed., rev., atual. e ampl. --São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, pg. 739): “... A justiça da recusa está ligada à coisa – se o demandante não consignou a coisa devida, mas coisa diversa, é justa a recusa do demandado (art. 313, CC). É fundamental que o demandado que alega insuficiência do depósito indique o montante que entende devido. Serve essa indicação para que o demandante possa exercer o direito de complementação do depósito (art. 545, CPC; STJ, 4ª Turma, REsp 260.743/SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior. Julgamento de 10.03.2006, DJ de 23.10.2006, pg. 314). O valor incontroverso pode ser desde logo levantado pelo demandado (arts. 356, I e 545, § 1º, CPC)”.
Conforme art. 5º, XXXV, da CRFB/88: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
O princípio da inafastabilidade de jurisdição ou de amplo acesso ao Poder Judiciário, na lição de Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino (in. Direito Constitucional descomplicado. - 15. ed. rev. e atual. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2016, pg. 155): “...Consubstancia, outrossim, uma das mais relevantes garantias aos indivíduos (e também às pessoas jurídicas), que têm assegurada, sempre que entendam estar sofrendo uma lesão ou ameaça a direito de que se julguem titulares, a possibilidade de provocar e obter decisão de um Poder independente e imparcial. Por essa razão, não só a lei está impedida de excluir determinadas matérias ou controvérsias da apreciação do Judiciário; a inafastabilidade de jurisdição, sendo garantia individual fundamental, está gravada como cláusula pétrea (CF, art. 60, § 4º, IV), insuscetível de abolição, nem mesmo mediante emenda à Constituição...”.
Neste sentido, assim já julgou o Superior Tribunal de Justiça - STJ: “Como em qualquer outro procedimento, também na ação consignatória, o juiz está habilitado a exercer seu poder-dever jurisdicional de investigar os fatos e aplicar o direito na medida necessária a fazer juízo sobre a existência ou o modo de ser da relação jurídica em que lhe é submetida a decisão. Não há empecilho algum, muito pelo contrário, ao exercício, na ação de consignação, do controle de constitucionalidade das normas...”. (STJ, 1ª Turma, REsp 659.779/RS, Rel. Min. Teori Zavascki, julgamento de 14.09.2004, Diário da Justiça de 27.09.2004, pg. 281).
Portanto, a nosso ver, cabível a legítima propositura de Ação de Consignação em Pagamento ao Poder Judiciário, a fim de se evitar enriquecimento ilícito por parte do Poder Público (municipal ou distrital) responsável pela venda direta de imóveis sujeitos à Lei federal 13.465/17.
Carlos Honório da Silva
OAB/DF 73535
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